domingo, 26 de novembro de 2017

Ser

A eterna superstição do Ser.
Uma pedra em meio caminho da linguagem. Usamo-la (a linguagem) para apreender, encarcerar. Não para fazer mover. A intenção que molda o ato da fala é a de definir. Passa-se, logo em seguida, a atribuir esse caráter circunstancial a uma concepção essencial da linguagem. Acredita-se, por força de hábito, que esse é um caráter intrínseco à expressão. "Definir" - tal é a função que cremos ser a da linguagem. Ilusão das ilusões. Uma vez que acreditamos ser esse o papel da língua, nos enveredamos cada vez mais num labirinto particular. Ao mesmo tempo que o criamos. O labirinto da palavra. Uma vez que somos seduzidos por uma certa intuição do definitivo, pela substância, pela essência - que nada mais é que uma interpretação de pura pressa -, passamos a ver a realidade, o seu acaso, a sua impermanência, o seu caos, as suas dores e as suas imprevisibilidades, como erros a serem corrigidos. Acreditamos num certo discurso de "melhoramento do mundo". Queremos entender, queremos teorias, queremos uma verdade permanente. E quanto mais nos esforçamos pela definição, mais evidente é a impermanência aos nossos olhos. E por medo, por medo!, não aceitamos o desapego das "verdades" erigidas pelos homens. Queremos porque queremos crer!, mas o universo faz o exato oposto. Quer que percebamos a magnânima superficialidade do mundo, seu propósito estético. E nos aparece aos sentidos como um espetáculo de cores e sabores e sons dos mais diversos; em tudo podemos encontrar uma clareira, em cada pequeno objeto uma fonte inesgotável de vida, jorrando eternamente, transbordante. Em lugar de desapego, preferimos o desprezo: não aceitamos que em lugar de uma morte definitiva, todas as coisas se transformam em outras, se misturam entre si, se refazem em novas combinações. Por medo de uma palavra e os milhões de fantasmas que nela residem, aos quais a nossa imaginação mesma dá de alimento, acabamos nós mesmos sem alimento. Recusamos a aparência, julgando-a falsa. Não queremos mais ser crianças, cuja seriedade consiste em jogar, em brincar, em se deixar levar pela correnteza dos acontecimentos. Nós desprezamos. O Deus que herdamos é o grande desprezador: um ideal feroz de humanidade. Quanta soberba não há em dizer que nada vale a "pena"? Quanto não há, também, em recusar-se a viver, por medíocre medo do engano? Preferimos o desprezo ao desapego. Preferimos petrificar a dançar. Preferimos morrer de sede e de fome a ceder. Não temos segurança em nossa força, e por isso escarramos injúrias contra o Outro que nada mais é do que o Si Mesmo. Somos como Elisabeth Vogler, buracos negros carentes de tudo, sugadores de tudo, como vampiros: sofremos pela falsidade apesar da atuação poética mesma desse sofrer, como integrantes de uma grande peça teatral. Queremos sugar a vitalidade e encarcerá-la em brinquedos de cristal. Sonhamos, deliramos pela Criação. Idealizamos mundos impossíveis - porque impossíveis -, romantizamos as idéias até a vertigem. Até que, de recusa em recusa, aos nossos ouvidos toda fala agora tem seu erro, sua dissonância. Agora, todo minúsculo ato de fala é uma queda ou uma ascensão: é uma queda e uma ascensão. A diferença está sempre no como. Tudo torna-se crucial; estamos no cume da fraqueza. Quisemos ela (a fraqueza), pois só assim nos aprofundaríamos, se refinariam todas as sensações; perceberíamos a crucialidade de cada segundo. De onde extrair forças para agir? Não é possível que nos afundemos em verdades moldadas na pressa, na impaciência, na vontade bruta, para a qual tudo é questão de possuir ou matar. Como manter o equilíbrio da mente? Como nos desvencilharmos do vício da desconfiança, gerada pela concepção de falsidade, de engano? Sentir a urgência de existir, a pulsação de cada coisa, a grande, grande sensibilidade em carne viva da realidade, e ainda assim e por isso mesmo, sentir todo o prazer dessa sensibilidade?

Falou uma idealista que, por sofrer demais de seu idealismo, entendeu-o, e por isso deu piruetas de alegria e recitou esse breve texto aos ouvidos mais próximos, com amor. Terminada a leitura, arrefecida a empolgação, o texto retornava em sua memória, lhe demonstrando toda a sua brevidade, por meio de novas ramificações de pensamentos. Já não podemos mais creditar-lhe a autoria.